Crónica de Alexandre Honrado
Uma presença sem mistério
É logo no início da década de 1980 que Eduardo Lourenço vê publicado um dos (seus) livros que mais reli: O Espelho Imaginário. Fala de pintura, também de antipintura e de não-pintura e como sempre acontece com Lourenço vamo-nos enredando numa linguagem tecedora, das que nos levam às profundezas – às “profundidades vazias da nossa impotência” – mas que nos mantêm à tona, puxados invariavelmente pela inebriante magia do que no pensador resiste do poeta e do que na escrita é ponto de encontro de onírico e de realidade despertada.
A começar pelo título – o espelho imaginário não será, por ventura, aquele em que, todos nós, nos vemos e erradamente nos revemos? – e prolongando-se depois em quase todas as páginas, onde há sempre motivo para descobrir novas leituras debaixo da leitura, nua arqueologia do pensamento e do pensar, é mais do que um livro, mas um sentido de oportunidade: a de estar comigo comungando com outros.
O século de narcisismo em que vivemos, em que cedemos tanto à imagem que nos tornamos artifícios e máscaras de nós, mesmo sem as máscaras que usamos como resistência às novas ameaças que criámos, remeteu-nos à dupla face das experiências, e somos mais botox do que rostos. Não esqueço a definição, que me arrepia: o botox ou toxina botulínica é uma neurotoxina, produzida pela bactéria Clostridium botulinum. A vanidade é tanta que nos esquecemos da pertença do coletivo e permitimos que muito poucos ditem a sorte de todos os outros distraídos.
Quase logo no início do livro, Eduardo Lourenço dá-nos um raciocínio fechado, que parece não querer contraditório de tão sólido. Já transcrevo a frase, antes porém digo que podia ser dita hoje ou em tantos outros momentos da história humana, mais ambiciosa que prudente, mais ousada que inteligente. Uma frase que vem ao encontro do que pensei ao escrever tudo isto. Diz Lourenço: “os homens aproximam-se, porventura dos limites dos seus poderes”.
A verdade é que são poucos e fracos os nossos poderes. Parece-me que a doença contemporânea não é a COVID, mas esta frustração de não sermos mais do que ilusões, uma “presença iconográfica sem mistério”, para usar as palavras de Lourenço.
Quando leio Eduardo Lourenço apreendo a escrita como espaço. É por isso que, ao contrário de muita gente que me rodeia, gosto de ler – e de escrever. Preciso de um espaço que não seja apenas espaço. Preciso de um espaço onde me encontre e reencontre, onde o espelho não me devolva apenas a minha imagem imaginária, um espaço onde os corpos não caiam nas batalhas sem sentido. Não um espaço mediático, um espelho imaginário, mas um recinto capaz de resistir ao caos, essa outra visão (ou tradução) do mundo que nos atormenta até ao infinito da insensibilidade que, essa sim, é o limite de todos os poderes.
Alexandre Honrado
Pode ler (aqui) todos os artigos de Alexandre Honrado